Pular para o conteúdo principal

Intromissão


Metódica, sistemática, e morando sozinha, a mulher cultivava pequenos prazeres, aos quais se dedicava nos fins de semana. Um deles era ler. Lia bons livros, sem dúvida, mas tinha uma queda especial pela leitura de revistas. E suas preferidas eram as revistas estrangeiras, de viagem ou decoração. Aqueles mundos coloridos a deixavam encantada, tinham o poder de transportá-la para muito, muito longe dali.
Suas tardes de sábado eram um ritual: recostava-se na cama e se dedicava a folhear as revistas que comprara na véspera, na simpática loja 24 horas a poucos metros de seu prédio. Começava pelo cheiro. Fechava os olhos e levava uma das revistas ao nariz. Não era só o odor da tinta ou do papel. Aquelas revistas estrangeiras tinham o cheiro de outra dimensão, com a qual a mulher, flutuando em sua cama, sonhava. O perfume que emanava das páginas fazia com que uma pequena fração daqueles mundos de fato se materializasse para ela. Depois, era o tato. Abria os olhos e começava a folhear as páginas, bem devagar. Sentia um prazer físico em deslizar as pontas dos dedos pelo papel brilhante, como se apreendesse na pele as cores, as imagens. Era uma delícia.
Mas para que tudo isso acontecesse, para que pudesse aproveitar por inteiro a sensação de estar sendo transportada, precisava de uma coisa: silêncio. Enquanto folheava suas revistas, a mulher não ligava nem televisão, nem som, nada. Qualquer interferência sonora desfazia o encanto.
E foi assim - assim como uma intromissão - que encarou o ruído que de repente lhe chamou a atenção naquela tarde. Não que a assustasse, de forma alguma, parecera-lhe até banal. Mas era um som e, como tal, capaz de atrapalhá-la em seu momento de relaxamento. Um som surdo, continuado, insistente.
A princípio tentou não pensar nele. Fixou bem os olhos na página dupla da revista que mostrava uma praia das ilhas Seichelles, com um mar azul transparente e pedras de um formato estranho, estriadas, parecendo lagartos ao sol. Mas o som intermitente começou a crescer, a encorpar-se, clamando por atenção, desconcentrando-a, quase como se a provocasse. Passou mais uma página. As ilhas, o paraíso. Era ali que queria estar, era para lá que se transportaria - por que o som não a deixava? Uma terra distante, um mundo perfeito, tão diferente do seu, um lugar onde talvez jamais estivesse só. Apenas o som a puxava de volta.
Irritada, fechou a revista. E nesse mesmo instante, num segundo - como um jato ou uma bofetada - compreendeu o que aquele som significava. Os baques surdos, compassados, deram-lhe de repente a dimensão da solidão em que vivia. Eram as batidas de seu coração.

Autora: Heloisa Seixas.

*Heloisa Seixas é uma das autoras da Literatura Brasileira Contemporanea que descobri há pouco tempo. Ela transmite os sentimentos, as emoções e os detalhes de uma riquissima e inesperada. Vale a pena a leitura de seus textos, principalmente dos "Contos mínimos".

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O segundo semestre de 2016 foi, provavelmente, o tempo mais desafiador da minha vida. Foi o início do meu processo de mudança, e também a época das minhas crises mais fortes. Em poucos meses, perdi as contas de quantas vezes acordei em meio a um ataque de pânico. Mas foi também o momento em que resolvi que aquilo não era normal e que estava cansada de viver presa a tudo aquilo; era hora de mudar, nisso também. A partir de então, fui buscando saídas, técnicas, possibilidades de mudança, de melhora. A vida foi me ajudando e me apontando caminhos; hoje, muitos deles são os que me salvam nos momentos de sofrimento. O que faço? 1. Terapia - não foi a primeira técnica que tentei, mas é o topo da lista porque hoje sei que não posso viver sem. É meu maior investimento em mim mesma e na minha saúde. Desde a adolescência falava de ir para a terapia, mas cresci em uma família que acredita(va) que doenças psicológicas eram bobagem ou frescura; além disso, sempre tive dificuldade em falar dos m...

Descoberta

Sob a sua árvore favorita do parque, Isabella passava muitas de suas tardes. Normalmente ia até o local para se distrair e relaxar, especialmente depois de alguma das comuns brigas que aconteciam entre ela e sua avó. Mas aquele não era um dia como qualquer outro. A família Porto era originária do Brasil, mas se mudaram para os EUA pouco tempo depois de Isa nascer. Nessa época, seu pai e seu avô, donos de uma gravadora, a 2plus2 Music, fecharam acordo com a famosa King song, e, por isso, mudaram-se para aquele país. Durante toda a infância e adolescência, a menina aprendia as coisas em dobro: eram dois idiomas, duas culturas, dois tipos de música, duas tradições. Duas educações. Ao contrário do que aconteceria no Brasil, caso tivesse crescido em sua terra Natal, lá ela frequentava as aulas normais na escola, em Inglês, e, a tarde, tinha aulas particulares de Língua Portuguesa, Literatura, História e Geografia Brasileira. Sua família sempre quis preservar as raizes, principalmente porque...

"Eh, Pagu, eh!"

“Quero ir bem alto, bem alto...numa sensação de saborosa superioridade...é que do outro lado do mundo tem uma coisa que eu quero espiar” – Patricia Galvão Não sei exatamente há quanto tempo me interesso pela figura de Patricia Galvão - ou, como é mais conhecida, Pagu. Não existe uma data marcada para que eu possa dizer: foi nesse dia em que a descobri. Não. Na verdade, hoje, vejo isso quase como algo intrínseco. Não lembro quando comecei a alimentar o desejo de descobrir mais, estudar, ler, conhecer, tentar entender o que se passava na cabeça dessa mulher. Lembro-me de uma única coisa: lá, nesse começo remoto, a única coisa que sabia era que ela havia sido uma militante política e que sofrera por toda a sua vida. Tão pouco perto do – ainda pouco – que sei hoje. Tanto para uma adolescente que só conhecia um mundinho cor-de-rosa, sem sofrimentos, sem dor, sem luta. Ao certo, a minha primeira lembrança imagética dessa figura faz parte de uma de minhas mais antigas lembranças ...